Entre a toga e o paradoxo: quando a autoridade questiona a própria estrutura que jurou respeitar

Ao criticar a Justiça do Trabalho, ministro do Supremo expõe tensão entre garantias constitucionais e discursos econômicos que fragilizam os direitos trabalhistas

A nota pública divulgada pelo Colégio de Ouvidores da Justiça do Trabalho (COLEOUV), em 17 de abril, em resposta às declarações do ministro Gilmar Mendes no julgamento do Tema 1.389 no STF, reacendeu um debate necessário: até que ponto o discurso institucional pode ser usado para minar garantias constitucionais sob o argumento da eficiência econômica? Mais do que uma resposta, o episódio evidencia uma tensão estrutural entre autonomia judicial e pressões políticas disfarçadas de tecnicidade.

Por Waldeck José

O recente julgamento do Tema 1.389 da Repercussão Geral, no Supremo Tribunal Federal (STF), reacendeu uma velha e incômoda tensão: a desconfiança velada – e por vezes declarada – de parcelas do Judiciário em relação à Justiça do Trabalho. A fala do ministro Gilmar Mendes, que provocou a nota de repúdio do Colégio de Ouvidores da Justiça do Trabalho (Coleouv), transcende o episódio isolado. Ela desnuda um paradoxo estrutural: o de uma autoridade constitucional que, ao criticar uma instituição também constitucional, beira o campo da deslegitimação.

O centro da controvérsia gira em torno da liberdade econômica, bandeira frequentemente empunhada por defensores da flexibilização das leis trabalhistas. Mendes insinuou que a Justiça do Trabalho, ao proteger os direitos dos trabalhadores, estaria se colocando como um obstáculo à dinâmica econômica do país. Trata-se de uma narrativa perigosa – não apenas pelo conteúdo, mas por vir de um ministro do STF.

Ao sugerir que a Justiça do Trabalho resiste às determinações da Suprema Corte, o ministro parece esquecer que essa instância especializada existe justamente para equilibrar uma relação marcada por desigualdades históricas e estruturais. A Constituição de 1988 não apenas reconhece, como exige a existência de um ramo judiciário capaz de assegurar a dignidade do trabalhador. Reduzir essa função à pecha de “entrave” é, no mínimo, uma inversão dos valores fundantes da ordem democrática.

Entre leis e interpretações: a ambiguidade institucional

O mais inquietante nesse episódio é que ele não é isolado. Desde a reforma trabalhista de 2017, o discurso da “modernização” vem sendo usado como eufemismo para uma gradual erosão de direitos. Em nome de uma suposta racionalidade econômica, o que se tem visto é um esvaziamento das proteções sociais. E quando uma das últimas trincheiras – a Justiça do Trabalho – tenta manter-se firme, passa a ser alvo de críticas que, ainda que travestidas de tecnicidade, carregam forte conteúdo ideológico.

Esse é o paradoxo: um guardião da Constituição questionando a atuação de outro guardião da mesma Carta. Mais do que um embate jurídico, o que se vê é uma disputa por narrativas sobre o próprio papel do Estado na proteção (ou não) dos mais vulneráveis.

Democracia em xeque: o risco da desconfiança institucional

A crítica pública de um ministro do STF à Justiça do Trabalho não pode ser lida apenas como opinião. Quando parte de uma autoridade dessa envergadura, tem força simbólica e prática. Enfraquece a confiança na imparcialidade das instituições e compromete a segurança jurídica. A democracia, afinal, não vive apenas de leis, mas da solidez das instituições que as aplicam.

Ao atacar uma estrutura que atua em defesa da parte mais frágil da relação trabalhista, corre-se o risco de promover um desmonte silencioso, onde o direito cede à conveniência econômica. É nesse ponto que a fala do ministro extrapola o campo da crítica institucional legítima e adentra a seara da desconstrução.

Conclusão: a toga não pode ferir o próprio tecido que a sustenta

O debate sobre a Justiça do Trabalho não é novo, mas ganha contornos alarmantes quando parte de figuras centrais do Judiciário. A democracia exige vigilância constante, especialmente quando seus próprios pilares demonstram sinais de abalo interno. Defender a Justiça do Trabalho é, neste momento, defender o Estado Democrático de Direito.

E se há algo que a história já ensinou ao Brasil – muitas vezes de forma dolorosa – é que quando os direitos trabalhistas são tratados como entraves, o que está em jogo não é apenas a economia, mas a dignidade de milhões de brasileiros que vivem do trabalho. E é por eles que a Justiça do Trabalho deve ser não apenas preservada, mas fortalecida.

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